042-01 – A POESIA DOS PAÍSES ÁRABES

 

042.01 – A POESIA DOS PAÍSES ÁRABES

Fui convidado pela Livraria Poetria, na cidade do Porto – Portugal, para falar acerca da Poesia dos Países Árabes e da situação de revolta que está a acontecer nos respectivos países. Antes da leitura das poesias por parte de outros convidados, fiz a seguinte intervenção:

“Seguindo a minha tradição islâmica, cumprimento-vos com “Assalamo Aleikum” – Que a Paz de Deus esteja convosco. Esta é a forma dos muçulmanos se cumprimentarem. Usamos e “abusamos” desta saudação! Em Portugal, esta manifestação de harmonia foi desvirtuada, dando a origem à palavra “Salamaleque”, que literalmente significa mesura exagerada ou saudação interesseira. Não é só de “salamaleques” que nos ligam aos Árabes, conforme poderão ouvir mais adiante.

O Islão incentiva a procura do conhecimento. No Alcorão encontramos centenas de vezes a palavra caneta, ler, escrever e seus derivados. A primeira revelação do Alcorão começa com o seguinte versículo:

بِسۡمِ اللهِ الرَّحۡمٰنِ الرَّحِيۡمِ

اِقۡرَاۡ بِاسۡمِ رَبِّكَ الَّذِىۡ خَلَقَ‌ۚ‏ ﴿۱﴾  خَلَقَ الۡاِنۡسَانَ مِنۡ عَلَقٍ‌ۚ‏ ﴿۲﴾  اِقۡرَاۡ وَرَبُّكَ الۡاَكۡرَمُۙ‏ ﴿۳﴾  الَّذِىۡ عَلَّمَ بِالۡقَلَمِۙ‏ ﴿۴﴾  عَلَّمَ الۡاِنۡسَانَ مَا لَمۡ يَعۡلَمۡؕ‏ ﴿۵﴾

1 – Iqra (Recita) em nome do teu Senhor que criou; 2 – Criou o homem de um coágulo; 3 – Recita e o teu Senhor é o mais generoso; 4 – Que ensinou com a caneta; 5 – Que ensinou ao homem aquilo que ele não sabia”.

O próprio Alcorão recomenda-nos pedirmos a Allah, o fortalecimento da nossa sabedoria, através da prece “Rabi Zidni ilm” – Meu Senhor, conceda-me o conhecimento”. Muhammad, o Profeta do Islão, recomenda-nos: “Procurai a sabedoria, mesmo se para isso tiverdes de viajar até à China”. Os grandes pensadores e intelectuais muçulmanos seguiram a orientação divina, procurando e desenvolvendo o “ILM”, o conhecimento. Conhecer a literatura e a poesia árabe, é também compreender as diversas culturas unidas numa religião, que  foram impulsionadoras da ciência e da literatura. É compreender os povos que se regem pelo Alcorão na sua vida quotidiana, fazendo dele o seu código de vida.

A língua árabe atrai muitos ocidentais. Mesmo não percebendo nada das palavras, os ouvintes ficam comovidos. Veja-se o caso do AZANerradamente designado por “O cântico do Muezin”, que não é mais do que a chamada para a oração. Estas palavras doces, entoadas cinco vezes ao longo do dia, incentivam os mais curiosos a procurarem saber o significado. Alguns acabam por desenvolver os seus conhecimentos sobre a religião e convertem-se ao Islão. Abdul Basit Abd Us – Samad, já falecido, foi um dos maiores recitadores dos versos do Alcorão. Ainda é considerado um dos melhores recitadores de todo o Islão. Ninguém fica indiferente à sua voz, límpida e cativante, ao ponto de ficarmos comovidos. Actualmente, existem outros recitadores, também de grande qualidade. Uma vez, Abdul Basit fez parte duma delegação Egípcia, chefiada pelo falecido Presidente Gamal Abdel Nasser, em visita à antiga União Soviética. Na reunião, os membros do Partido Comunista, solicitaram-lhe para recitar alguns versículos do Cur’ane. Escolheu o Surat TA HÁ. Ao recitar com a sua bela voz, comoveu-os, ao ponto de alguns deles deitarem lágrimas, apesar de não compreenderem o respectivo significado.

Em Portugal, no século 11, nasceu um grande poeta Luso – Árabe, o AL MU’TAMID. De nome completo, Muhammad Ibn Abbad Al-Mu’tamid, conhecido como Rei-Poeta de Sevilha. Nasceu em Beja, foi governador e Califa de Silves e depois soberano de Sevilha. Encontra-se sepultado em Agmat, Marrocos, perto de Marraquexe. O respectivo mausoléu, foi visitado pelo Presidente da República Portuguesa, Dr. Jorge Sampaio. Na sua corte, reuniam-se grandes nomes da ciência e da literatura como o astrónomo Al-Zargali, o geógrafo Al-Bakri e os poetas Hamdis, Ibn Al-Labbana e Ibn Zaydul. Al Mu’tamid é conhecido pelos seus inúmeros poemas, que permitiram  descrever, com muita fiabilidade, a história da época.

Ibn Arabi, de nome completo, Abu Bakr Muhammad Ibn Ali Ibn Al-Arabi,  é outro Luso – Árabe e grande mestre sufi. Nasceu em Múrcia em 1164 e estudou Jurisprudência e teologia Islâmica em Lisboa. Deu uma grande contribuição no campo das Ciências Islâmicas. Valeu-lhe os títulos de “Vivificador da Religião” e de “Mestre Supremo”.

Na altura, a literatura, a poesia e a ciência floresciam no sul de Portugal e de Espanha. Os adeptos das 3 grandes religiões do Livro, os Judeus, os Cristãos e os Muçulmanos, viviam juntos em paz, trocando experiências. Os poetas referiram nas suas obras, os aspectos religiosos e sociais que regiam a vida quotidiana. Após o pôr-do-sol, a escuridão invadia a Europa, com excepção de todo o sul da Península Ibérica, onde as vias públicas e as casas eram iluminadas, não só pelas luzes artificiais, mas também pelas luzes do conhecimento e da sabedoria.

A luxúria, os gastos exagerados do reino, as querelas (fitna) com os pequenos reinos, a imposição de altos impostos para pagar as guerras e as extravagâncias dos governantes  e a má conduta contrária aos preceitos religiosos e morais, levaram à decadência dum período de conhecimentos e de esplendor, em plena Europa ainda adormecida.

São célebres os autores árabes e persas que, através da poesia, cantam louvores a Allah. Antes de iniciarem as suas carreiras, procuram atingir o “HAQIQAH”, ou seja o puro conhecimento. Mas, para o efeito, percorrem os “TARIQAH”, as vias para obterem a perfeição. Por isso se diz no meio religioso, que “AS VIAS PARA DEUS SÃO TÃO NUMEROSAS COMO AS ALMAS DOS HOMENS”. Vou referir-me a dois poetas sufis, que deixaram obras de inestimável valor e reconhecidos em todo o mundo. São eles, os poetas Sanai e Rumi.

Sanai, místico sufi, de nome completo, Hakim Abdul Majid Majdud Ibn Adam Sanai Ghaznavi, viveu na Pérsia e morreu por volta do ano 1131. A obra mais conhecida, é “Hadiqat al Haqiqa” – “O Jardim Fortificado da Verdade”, traduzida em diversas línguas. Eis aqui algumas das passagens, que fazem referência a Deus e à Sua criação:

“A razão levou-nos até à porta, mas foi a Sua presença que nos deixou entrar……. Mas como poderás alguma vez conhece – Lo, enquanto fores incapaz de conhecer-te a ti mesmo?… O lugar, Ele próprio não tem lugar; como poderia haver lugar para o Criador do lugar? Ele disse: “Eu era um tesouro oculto, a criação foi criada para que pudésseis conhecer-Me”. …. Só é longo o caminho porque te demoras em empreendê-lo: um único passo te levaria até EleO caminho para o Amigo não está longe de ti: tu mesmo és o caminho: então põe-te em marcha por Ele… A morte da alma é a destruição da vida, mas a morte da vida é a salvação da alma”.

Outro grande pensador, foi Dajal Ud-Din Muhammad Balkhi, mais conhecido por RUMI, é o maior poeta de língua persa. Morreu em Konya, Turquia em 1273. Extraordinário poeta, escreveu milhares de versos, referindo todos os aspectos, o universo, a natureza, as pessoas e principalmente Deus. Foi um embriagado pelo amor, fazendo dele “um louco de Deus”, como também eram São Francisco de Assis e outros grandes devotos. Nas suas obras, Rumi refere a imagem de Deus o Beneficente e Misericordioso (Rahman e Rahim), que ampara e encaminha sempre o Seu servo. Quando no coração existe o amor por Deus, Ele, o Criador, nunca nos abandona, conforme refere o Cur’ane: “Que o teu Senhor não te abandonou, nem te odiou. Não te encontrou extraviado e te encaminhou?” 93:2…7. Invocai-Me, que Eu vos atenderei”. 40:60.

Escreveu Rumi: “O Teu amor veio até ao meu coração e partiu feliz. Depois retornou, vestiu a veste do amor, mas mais uma vez foi embora. Timidamente lhe supliquei que ficasse comigo ao menos por alguns dias. Ele se sentou junto a mim e se esqueceu de partir”.

Escreveu Rumi: “Quando é que a religião foi única? Sempre houve duas ou três e a guerra e as querelas existiram entre elas. Como podeis vós tomar uma só,  todas as religiões? Elas tornar-se-ão uma no Dia do Julgamento, mas aqui em baixo é impossível, pois cada um tem finalidades e desejos diferentes”. A Unesco declarou 2007, o ano internacional de Rumi e celebrou os 800 anos do seu nascimento, tendo como lema, o seu legado: “construir a paz nas mentes dos homens”.

Deus e a Sua criação, o jardim, o perfume das flores, a tristeza, a alegria, a meditação, a sensualidade da guerra, a mulher, eram pretextos para os poetas descreverem os seus sentimentos. Consta uma lenda que há mil anos atrás, um poeta impedido de ver a sua amada, ateou fogo a porta da casa, para entrar e vê-la. Foi detido e levado à presença do juiz. Declarou-se inocente e como tal foi reconhecido pelo tribunal, ao alegar que a causa do desastre foi uma fagulha que se soltou involuntariamente do seu coração ardente.

O vinho é proibido pela religião, mas não deixou de fazer parte de inúmeros poemas, como este do Abd al-Malik, acabando por confirmar os maléficos das bebidas alcoólicas: “Durante toda a noite não parava de lhes servir vinho e de beber eu próprio… até que me embriagou tal como a eles…. Mas o vinho conseguiu bem a sua vingança: eu fi-lo cair na minha boca e ele fez-me cair a mim”.

O mundo está hoje em convulsão. Por um lado, as invasões e as ocupações indevidas das terras e por outro lado, a posição dos ocupados, retaliando e muitas vezes utilizando indevidamente a religião. Este confronto, faz com que o mundo se encontre numa encruzilhada e com um futuro incerto. Em resultado destas provocações, o Islão é hoje uma religião mal compreendida e distorcida. O Islão não pode ser conectado com os actos divulgados pelos jornais e televisões. Será que devemos atribuir ao Cristianismo, as atrocidades da inquisição? Refere o Alcorão: “Quem matar um ser humano, é como se tivesse dizimado toda a humanidade”. E por tal, prestará contas perante Deus.

Alguns Países Árabes estão em ebulição. Não é possível manter amordaçados por muito tempo, os  jovens sedentos por empregos, pelo pão e pela liberdade. Eles estão aí todos os dias nas televisões, afrontando os respectivos regimes. A melhor palavra, é a aquela que é dirigida ao rei tirano. Pelas palavras e pelas canetas, cairão aqueles que teimam manter-se no poder, conforme um ditado popular muito utilizado no meio muçulmano: “Depois de assentar a poeira, verás se montavas num cavalo ou num burro”.

“Oh amigo! Mantém-te afastado dos caminhos da opressão; oprimir a Criação, é esquecer o Criador”.  (Abdullah Al Ansari Al-Harawi – 1006/1089)

Apesar de todos estes obstáculos, os escritores e poetas árabes continuam a produzir obras de grande qualidade. Continuam a escrever, afrontando os governantes, lembrando as palavras de Deus, quando no dia do julgamento final, (zangado), segurando na Sua mão direita toda a terra e o céu dobrado: Deus perguntará: “Eu Sou o Rei; onde estão os reis (governantes) da terra?”.

No 3 de Maio, comemorou-se o Dia Mundial da Liberdade de Imprensa. É um atentado à dignidade humana, encarcerarem pessoas por manifestarem as suas opiniões. Também considero que é uma afronta à dignidade dos crentes das diversas religiões, quando alguns se dedicam a difamar os  respectivos símbolos, argumentando a utilização de liberdade de imprensa. Não é difícil encontrar a linha que separa o bom senso da maldade.

Para terminar, um belo poema de Rumi: “No Inverno, os ramos nus, que parecem dormir, trabalham em segredo, preparando-se para a primavera”.

Mais uma vez, o meu “SHUKRAN”, o meu obrigado e o meu reconhecimento por esta magnífica manifestação de cultura. Como diria o meu conterrâneo, o saudoso João Maria Tudela, Kanimambo! Salam! Fiquem em Paz! Fiquem com a Poesia Árabe”.

Abdul Rehman Mangá

 

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